Entenda como funciona o novo procedimento de fertilização aprovado pelo Parlamento Britânico

 Após anos de pesquisas e de muita discussão, o Parlamento britânico aprovou hoje um novo procedimento de fertilização in vitro que cria um bebê a partir de duas mães e um pai! Assisti emocionada ao debate e à votação ao vivo pela Internet.

 

Talvez no imaginário da população isso signifique Frankensteins, batalhões de clones, enfim, o começo do fim do mundo. Calma, antes de condenar mais um avanço da medicina como tantos outros que nos livram de s ofrimentos, vamos entender direito essa história. Desta vez o objetivo é eliminar doenças genéticas terríveis que envolvem as nossas mitocôndrias, que são basicamente as fábricas de energia das nossas células.

Pensem numa célula como um ovo: o núcleo é a gema e o citoplasma é a clara. No núcleo ficam 99,998% dos nossos genes, que vem metade do pai (no espermatozóide) e metade da mãe (no óvulo). Já as mitocôndrias ficam na clara, no citoplasma das células – e elas contêm os outros 0,002% dos nossos genes, um pedacinho bem pequeno, mas importantíssimo do nosso genoma – o funcionamento correto destes poucos genes é fundamental para que nossas células produzam energia. Acontece que nós recebemos as nossas mitocôndrias exclusivamente da mãe – elas estavam no óvulo que nos gerou.

Pois bem, mutações em genes das mitocôndrias causam doenças terríveis, que afetam os sistemas nervoso e muscular da criança (os que mais precisam de energia), levando a cegueira, epilepsia, retardo mental, fraqueza muscular, problemas cardíacos, entre outros. E mulheres portadoras dessas mutações estão fadadas a terem filhos doentes, pois as mitocôndrias de seus óvulos, e logo de seus futuros filhos, são defeituosas.

O que os cientistas ingleses aprovaram agora é que essas mulheres façam um “transplante de mitocôndrias” para terem filhos saudáveis – ou seja, substituam as mitocôndrias mutantes em seus óvulos por mitocôndrias saudáveis de óvulos doados. Para isso, o mais fácil é transplantar o núcleo do óvulo da mãe (a gema, contendo 99,998% do genoma da mãe) para dentro do óvulo de uma doadora saudável, c ontendo mitocôndrias normais. Só que ant es disso, o núcleo do óvulo da doadora é eliminado, abrindo espaço para o núcleo do óvulo da mãe. Ou seja, trocamos as gemas e assim fazemos um óvulo com o núcleo da mãe e o citoplasma, com as mitocôndrias normais, da doadora.

Esse óvulo corrigido é fertilizado pelo espermatozoide do marido, e assim dará origem a um bebê sem as mutações nas mitocôndrias. Geneticamente, ele será 99,998% filho biológico de seus pais e 0,002% da mulher doadora de mitocôndrias. Daí dizermos que essas crianças terão um pai e duas mães (e aqui, muito cuidado: filho BIOLÓGICO, porque do ponto de vista social, pai e mãe são os que criam a criança).

Mas se estamos livrando aquelas famílias de uma saga de gerações de filhos doentes, por que a controvérsia? Porque estaremos, pela primeira vez n a história da humanidade, fazendo intencionalmente alterações genéticas em embriões humanos, e apesar de ser uma alteração mínima e por um motivo muito nobre, qual será o limite disso? Poderemos um dia inserir genes de QI alto, olhos azuis ou cabelo liso? As modificações genéticas tornarão possível desenharmos bebês segundo nossos desejos? O que fazer com essas novidades científicas?

Além disso, do ponto de vista legal deveremos modificar as definições de “paternidade” e “maternidade” para que a doadora de mitocôndrias não venha a ter direitos sobre a criança? Se bem que, como casais apelam para doação de óvulos e espermatozoides há anos, imagino já existir uma solução legal para isso. De qualquer jeito, são questões que devem ser consideradas.

O parlamento inglês vem discutindo o assunto desde 2007, levando em consideração os avanços científicos que indicam que o procedimento é razoavelmente seguro, e a opinião de diferentes grupos da sociedade, incluindo alguns religiosos que, mais uma vez, são contra (mas até aí, a Igreja Católica ainda é contra a fertilização in vitro, que desde 1978 permitiu o nascimento de mais de 4 milhões de bebês...), e daqueles que temem que estejamos abrindo uma caixa de Pandora de onde sairão bebês trasngênicos (e esses ignoram o poder das leis e regulamentações, que nos permitem, por exemplo, usar energia do átomo, apesar do risco de uso da mesma tecnologia para produzir bombas atômicas – o que estava sendo votado era o uso da transferência de mitocôndria, e só de mitocôndrias, para o tratamento de doenças mitocondriais, e só dessas doenças).

De qualquer forma, é importante ouvir todos e de cidir de acordo com a vontade da maioria – contanto que esta maioria esteja bem informada e que as evidências científicas de segurança sejam condição não suficiente, mas essencial para a aprovação. E foi este lindo exercício da democracia educada que assistimos hoje no Reino Unido, que por 382 votos a favor e 128 votos contra aprovou o pioneiro uso da técnica para evitar o nascimento de crianças com doenças mitocondriais.

(Lygia V. Pereira é professora titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva e do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da Universidade de São Paulo)

Fonte: Portal O Globo