Embriões com óvulos de duas mulheres levantam questões éticas

 Passado “num futuro não muito distante”, o filme “Gattaca” (1997) mostra uma sociedade na qual as pessoas estão divididas em dois tipos: as geradas naturalmente, com todas suas qualidades e defeitos; e as “geneticamente perfeitas”, resultado da manipulação do DNA de embriões para livrá-los de “falhas” que podem causar desde problemas simples, como miopia e asma, a mais graves, como malformações congênitas no coração.

 

Sonho da eugenia, filosofia surgida no século XIX que prega a “melhoria” das populações por meio do casamento de pessoas com características supostamente “superiores” e eliminação ou esterilização das ditas “indesejadas” — classificação que, dependendo da sociedade e da época, incluiu desde doentes mentais a homossexuais, passando por negros, índios e judeus —, críticos afirmam que esse distópico mundo futuro de “Gattaca” ficou mais próximo. A Casa dos Comuns, no Reino Unido, aprovou nesta terça-feira emenda à lei que regulamenta a reprodução assistida no país, abrindo caminho para o uso em humanos de técnicas que permitem gerar embriões com duas mães e um pai, de forma a livrar as crianças do risco de doenças provocadas por defeitos genéticos nas mitocôndrias.

Verdadeiras “usinas de energia” das células do corpo, as mitocôndrias têm seu próprio conjunto de informações genéticas que são passadas apenas das mães para os filhos. Em algumas mulheres, no entanto, esse DNA mitocondrial sofreu mutações ou apresenta falhas que impedem as estruturas celulares de funcionar normalmente. Dependendo da gravidade dos defeitos e da proporção de mitocôndrias afetadas, isso pode provocar diversos problemas de saúde nos filhos, principalmente em órgãos e tecidos que usam muita energia, como cérebro, coração, fígado e músculos. Com isso, muitas dessas crianças não chegam à idade adulta, num drama que atinge um em cada 6.500 bebês no Reino Unido.

Decisão por 382 votos a 128

Foi esse o cenário que motivou a decisão da Câmara Baixa do Parlamento britânico por 382 votos a 128. A decisão ainda tem que passa r pela Casa dos Lordes, a Câmara Alta, mas a expectativa é de que a alteração da lei seja aprovada ainda este ano, com os primeiros bebês gerados com essas técnicas devendo nascer já em 2016.

Frutos de anos de pesquisas, os dois métodos tiram vantagem dos enormes avanços obtidos na área de fertilização in vitro (FIV) nas últimas décadas. No primeiro, o núcleo de embriões dos pais, que carrega todas as informações genéticas responsáveis por características como a cor dos olhos e dos cabelos, altura etc, é removido e implantado em embriões gerados por doadores sem mitocôndrias defeituosas, que tiveram seu próprio núcleo retirado. No segundo, a técnica é semelhante, mas, no lugar de embriões, apenas os óvulos da mãe e da doadora são combinados. Em ambos os casos, os bebês resultantes apresentariam a herança genética praticamente apenas dos pais naturais, já que os cromossomos do núcle o concentram cerca de 99,9% dos genes ativos em seres humanos. Mulheres nascidas a partir dessas técnicas, porém, transfeririam para sua prole só as mitocôndrias das doadoras.

— O grande problema é que isso vem sendo descrito como uma fertilização in vitro com três genitores, quando de fato é uma fertilização in vitro com 2,001 genitores — destacou Gillian Lockwood, especialista em ética reprodutiva, à rede britânica BBC. — Menos de 0,1% do genoma será afetado, e não é a parte que geneticamente faz quem somos. Ela não influencia a altura, a cor dos olhos, a inteligência ou a musicalidade.

Os críticos da medida, porém, veem na sua aprovação o início de um processo que pode levar ao surgimento de bebês com características “sob medida”, ao estilo de “Gattaca”.

— Isso vai ser repassado ao longo de gerações, com implicações que simplesmente ainda não podem ser previstas — protestou a deputada Fiona Bruce durante o debate antes da votação na Casa dos Comuns. — Mas uma coisa é certa: uma vez que o gênio estiver fora da garrafa, uma vez que esses procedimentos que nos pediram para autorizar forem levados à frente, não vai ter volta.

As igrejas Católica e Anglicana também se declararam contra a aprovação dos métodos para uso em humanos. No caso dos católicos, a principal objeção envolve o uso e o descarte de embriões em um dos métodos. “O embrião humano é uma nova vida humana, e ela deve ser respeitada e protegida desde o momento da concepção”, afirmou em comunicado o bispo John Sherrington, d o Departame nto para Responsabilidade e Cidadania Cristã da Conferência de Bispos Católicos. Já o reverendo e médico Brendan McCarthy, conselheiro de ética médica da Igreja Anglicana, preferiu destacar a “falta de evidências científicas” sobre o método.

— Um grande número de questões ainda precisa ser respondida — disse McCarthy ao jornal britânico “Telegraph”. — Nossa visão permanece: a lei não deve ser alterada até que tenhamos mais estudos científicos e um debate melhor informado sobre ética, segurança e eficácia.

Primeiro-ministro perdeu filho com paralisia

A aprovação da emenda, porém, contou com o apoio explícito de diversos grupos de cientistas e do próprio primeiro-ministro britânico, David Cameron, cujo filho Ivan morreu aos 6 anos com paralisia cerebral e epilepsia. Segundo Cameron, a proposta não implica que os cientistas vão começar a “brincar de Deus” nem abre caminho para bebês geneticamente desenhados.

— Creio que isso dará aos pais que querem um filho saudável e feliz a chance de ter esse bebê — afirmou Cameron em entrevista à rádio britânica LBC. — Como alguém que já teve a experiência de ter uma criança com deficiências severas, tenho toda a empatia com esses pais. Isso é algo que pode ser feito e que penso, a partir de todas as pesquisas e evidências, não ser brincar de Deus com a natureza. É mais como a doação de um rim ou de um pulmão do que algum tipo de alteração fundamental (na genética dos bebês).

Ginecologista e especialista em reprodução humana assistida, o médico brasileiro Marcio Coslovsky concorda:

— As técnicas de reprodução assistida atuais fazem testes para várias coisas, e já há seleção de embriões, tanto para evitar implantar embriões inviáveis como para prevenir doenças. O objetivo não é “melhorar a raça”. No meu modo de ver, essas técnicas de substituição mitocondrial fazem a mesma coisa. Não vejo qualquer impedimento ético de usá-las se estiverem disponíveis. Acredito que tudo que for desenvolvido para evitar doenças e sofrimento deve ser usado, mas o que for só para escolher características ditas “superiores” deve ser combatido a todo custo.

Fonte: Portal O Globo