Os desprescritores

 Preocupados com efeitos colaterais, médicos da família aderem a movimento para cortar remédios dos pacientes; é preciso cautela antes de jogar receita fora, diz professor da USP.

CLÁUDIA COLLUCCI DE SÃO PAULO

Primeiro, ele tirou o anticoagulante da mãe. Depois, o diurético do pai e, por fim, o antidiabético da prima.

“A família pensou que eu estivesse maluco“, conta o clínico-geral e médico de família Marco Aurélio Melo, 42, professor em duas universidades em Goiás.

Ele adota a mesma atitude com seus pacientes na atenção básica de saúde, onde atua há 18 anos. “No início, eles estranham. Depois agradecem porque se sentem melhor sem os efeitos colaterais de remédios desnecessários.“

Rotina semelhante tem Hamilton Lima Wagner, médico de família e comunidade em Curitiba (PR). “Já desprescrevi para minha mãe, meus irmãos e para a minha esposa, pois identificava efeitos colaterais em medicamentos que estavam usando“, diz.

Marco e Hamilton não estão sozinhos. É crescente o movimento da chamada “desprescrição“ entre os médicos de família e comunidade, especialidade que reúne 5.000 no país. Trata-se de um processo de reduzir ou suspender medicamentos.

Eles se apoiam na ideia de que muitos medicamentos fazem mais mal do que bem quando prescritos sem necessidade ou usados por tempo prolongado. O assunto foi discutido no Congresso Brasileiro de Medicina e Comunidade, que ocorreu em Natal (RN).

Exemplos de medicamentos frequentemente desprescritos são o ácido acetilsalicílico (AAS), que tem função de anticoagulante, o omeprazol e seu similares, usados para combater a azia e a doença do refluxo, e a metformina, indicada a pacientes diabéticos e pré-diabéticos.

“Minha mãe é hipertensa controlada e estava tomando AAS infantil sem uma razão consistente. Além de não ter ganho, sof r ia queimação do estômago. Tirei há dois anos. Ela ficou ótima“, conta Melo.

Da prima, classificada como pré-diabética, ele tirou a metformina. “Com dieta adequada e atividade física, o nível glicêmico se normalizou e se mantêm controlado há três anos.“

O omeprazol é outro clássico da desprescrição. É muito comum a pessoa já não ter mais sintomas da gastrite e continuar tomando. O abuso motivou a FDA (agência americana de fármacos e alimentos) a fazer alertas sobre o risco dessa prática.

O uso prolongado leva ao chamado rebote, ou seja, ao se interromper o remédio abruptamente, os sintomas voltam, fazendo o paciente acreditar que tem de usá-lo para o resto da vida.

O problema é que o uso crônico leva à diminuição da absorção de vitamina B12, o que pode causar problemas de concentração, de memória, confusão, anemia e até alterações de ritmo cardíaco.

“É frequente a orientação dada por alguns especialistas de que determinado remédio deve ser usado pelo resto da vida. Não consideram as interações medicamentosas ou os efeitos colaterais do uso prolongado“, afirma Wagner.

Especialmente entre idosos, é comum o uso de vários remédios diferentes, ao mesmo tempo, e em tratamento prolongado –a chamada polifarmácia.

“Os diversos medicamentos para tratar doenças crônicas frequentemente criam dificuldades operacionais, pois agem em lugares simultâneos ou interferem na ação dos demais“, explica Wagner.

Foi o que aconteceu com a aposentada Maria Aparecida de Sousa, 67. Ela chegou à uma unidade de saúde da família na zona oeste de São Paulo com pancitopemia (redução de todos os elementos do sangue, glóbulos brancos, vermelhos e plaquetas), além de falta de ar e de apetite.

Ao analisar os remédios que a aposentada tomava, o residente Stephan Sperling matou a charada: duas drogas para artrite reumatoide, receitadas um ano antes, e um anti-hipertensivo eram os responsáveis pelos sintomas.

“A artrite estava sob controle e as medicações já poderiam ter sido desprescritas. O que gente tinha que cuidar, na verdade, era do medo que dona Maria tinha de sentir dor“, conta Sperling. O anti-hipertensivo foi trocado.

“Não sinto mais dor, estou bem disposta. Minha vida mudou desde que parei com a medicação“, conta Maria.

Gustavo Gusso, médico de família e professor da USP, explica que, para adotar a desprescrição, o profissional precisa estar bem atualizado e, antes de tudo, estabelecer um vínculo com o paciente.

“Isso não ocorre na primeira consulta. Os efeitos positivos e negativos da medicação precisam ser bem avaliados.“

Fonte: Folha de S.Paulo