Durmo, mas não sei


Distúrbio cognitivo faz com que pessoas tenham horas normais de sono, mas não percebam isso

Ninguém consegue passar meses absolutamente sem dormir. Ainda assim, muita gente jura que está há vários anos sem pregar os olhos. Essas pessoas não estão mentindo. Elas simplesmente não percebem que dormiram. “Alguns pacientes têm uma quantidade normal de horas dormidas, mas, por uma alteração cognitiva, não se dão conta disso“, explica o neurologista Luciano Ribeiro, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Embora pouco conhecido, o distúrbio, chamado de insônia paradoxal, não é um subtipo especial de insônia -problema que afeta cerca de 32% dos paulistanos. “Estudos já mostraram que pessoas com insônia têm a tendência de subestimar suas horas dormidas. Nesses casos, então, isso vai ao extremo“, explica Ribeiro. “Há pacientes que chegam ao consultório e dizem que não dormem há dois, três anos. Isso, claro, é biologicamente impossível, mas eles não se dão conta desse fato.“

A maioria das pessoas que sofre com esse distúrbio consegue se lembrar de boa parte do que aconteceu durante a noite, o que reforça a ideia de que passaram praticamente a noite toda acordadas. Isso acontece porque quase 50% do tempo de sono é do chamado sono leve, quando se pode registrar estímulos visuais e auditivos.

“Grosso modo, é como acontece quando alguém cochila rapidamente vendo televisão. Muitas vezes a pessoa sequer percebe que dormiu, porque consegue lembrar das imagens e das falas“, afirma o neurologista. Normalmente existe uma espécie de bloqueio do organismo que nos “desliga“ desses estímulos. Em quem sofre com a insônia paradoxal, por alguma razão, isso não costuma acontecer.

Para o bom funcionamento do organismo, não basta dormir. É preciso ter consciência do sono. Por isso, muitos dos que têm esse distúrbio costumam apresentar sintomas típicos da verdadeira privação de sono, como cansaço e irritabilidade. Assim como na insônia “convencional“, os principais afetados são aqueles submetidos a situações de stress ou desgaste emocional. Esses sintomas típicos da privação de sono, aliados ao desconhecimento do distúrbio, costumam mascará-lo.

Os médicos costumam se basear apenas no relato dos pacientes para medir as horas dormidas, o que pode levar à indicação equivocada de remédios para dormir. Para ter o diagnóstico preciso, é necessário fazer uma polissonografia, exame que indica, entre outras coisas, a quantidade de horas realmente dormidas.

“Tratamento de insônia que se baseia só no relato do paciente não vai ter fim nunca. Leva a um aumento desnecessário de doses de medicamentos e a muitos prejuízos ao paciente. Infelizmente, acontece nos consultórios não só do Brasil, mas dos Estados Unidos e de outros países“, avalia Luciano Ribeiro.

Como quem sofre com esse distúrbio pode não ter efetivamente dificuldades para dormir, medicamentos que induzem o sono não são o foco do tratamento. É preciso, principalmente, um trabalho de conscientização -para não dizer convencimento- do paciente para o fato de que ele dorme. “A terapia comportamental cognitiva combina vários aspectos. É trabalhar com as ansiedades do paciente e ensiná-lo a perceber seu sono“, conclui Ribeiro.

Fonte: Folha de São Paulo