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O super-herói que vive em todos nós
RIO - Correr por 24 horas no calor da primavera carioca, centenas de voltas numa pista de 400 metros. Missão impossível para a maioria das pessoas, um pesadelo até. Mas para algumas representa mais do que um desafio esportivo. Significa uma aventura nos limites do corpo e da mente. Uma viagem de autoconhecimento. “Não é s empre que você tem 24 horas só para si”, diz o analista de sistemas Josué Netto, um dos cerca de 200 participantes da VI Ultramaratona Rio24h Fuzileiros Navais, que acontece no próximo fim de semana, no Centro de Educação Física Almirante Adalberto Nunes (Cefan), na Avenida Br asil. Provas assim parecem destinadas a atletas de elite, mas atraem um número cada vez maior de amadores que, acima de tudo, possuem determinação e foco. Mais do que resultados esportivos, elas revelam que a capacidade do corpo e, sobretudo, da mente é muito maior da suposta. São lições dos ultradesafios aplicáveis a pessoas comuns.
Diferentemente do que muitos poderiam imaginar, a Ultramaratona Rio24h não é voltada para os atletas de elite, em busca de performance. Eles, claro, estarão lá, na largada. A prova tem nível internacional. Mas haverá também gente que almeja some nte completar. Donas de casa, aposentados, profissionais liberais, como Josué Netto. A prova começa às 9h do próximo sábado, dia 5, e termina às 9h do domingo. Oficialmente, ganha quem percorrer a maior quilometragem em 24 horas. Para muitos dos participantes - até o fechamento desta edição havia 266 inscritos, 170 dos quais confirmados - o importante é completar. Cruzar a linha de chegada, em retumbante vitória pessoal.
- No ano passado o participante mais velho tinha 86 anos e percorreu 80 quilômetros - observa o diretor geral da prova, o capitão-de-mar-e-guerra dos Fuzileiros Navais José Ayres Brum Bencardino.
O coordenador técnico da assessoria esportiva Filhos do Vento Ricardo Sartorato, ele p róprio ultramaratonista, diz que, em tese, qualquer um poderia planejar fazer uma prova assim. O que faz a diferença são o treinamento e a determinação. Alguns fatores físicos ajudam muito. Pessoas sem histórico de lesões e baixo índice de massa corporal (peso em relação à altura) tendem a se sair melhor, pois forçam menos o corpo.
Outros pré-requisitos são o tempo disponível para treinar - para isso, apoio da família e dos amigos é fundamental - assim como disciplina, treinamento bem planejado e disposição para fazer sacrifícios, coisas como acordar às 5h nos domingos para treinos que superam facilmente os 40 quilômetros. São determinantes o conhecimento do próprio corpo e a resiliência, a forma como enfrentamos a dor, a exaustão e mantemos o controle da mente.
Josué Netto, treinado por Sartorato, reúne essas características. Começou a correr há apenas cinco anos e materializou na corrida o clichê da fonte inesgotável de prazer. Aos 51 anos, lembra da música dos Titãs para dizer que “só quer saber o que pode dar certo, não tem tempo a per der”.
- Deveria ter começado antes. A corrida me traz paz, alegria, autoconhecimento, uma nova sensibilidade. Correr não é só atividade física. Quem não vê esse lado quase espiritual da corrida, não aproveita tudo o que ela pode proporcionar - frisa.
Como corredores de longa distância sabem, o cérebro determina muito do seu desempenho, não é ap enas preparo físico. Este é importante para ir mais longe. Mas não é tudo.
- Se eu tivesse que fazer essa prova há dois anos, seria mais difícil. Mas você acumula milhagem e os treinos passam a ficar mais fáceis. E aí percebe distinções im portantes em como sua mente funciona. Quando eu corro em ritmo mais forte, esvazio a mente, abstraio tudo à minha volta. Se passar um elefante sou capaz de não ver. Num ritmo moderado, apuro a sensibilidade, tenho ideias sobre o trabalho e outras coisas, que normalmente não teria. É um desafio mental, mas um desafio prazeroso. Quero correr ainda por muitos anos - afirma ele, que já completou oito maratonas e seis ultras.
Sartorato espera que Josué percorra pelo m enos 160 quilômetros, o que equivale a quatro maratonas num só dia - uma maratona tem 42.195 metros.
- Não pretendo dormir, apenas descansar um pouco. Estou muito motivado, acho que vai entrar no meu rol de provas mágicas. Uma viagem interior, que acrescentará boas co isas - diz.
Igualmente motivada está Denise Paiva Lucas Campos, de 34 anos. Essa é a quinta vez de Denise na prova, na qual é soberana indiscutível. Em todas, ganhou no feminino e ficou em segundo lugar geral. Denise, que é cabo do Corpo da Armada, é uma atleta de elite. Diferentemente de Josué, seu foco é a performance. Largará no sábado em busca do primeiro lugar geral.
- Os competidores homens ficam preocupados comigo, quando vou parar, quando vou comer. Eu não sinto sono e tenho pouca fome - diverte-se.
Mas a competição é séria. Ela já percorreu 224 quilômetros numa das versões da Rio24h e sua média de treinamento semanal fica entre 160 e 180 quilômetros. Tem o biotipo ideal para esse tipo de prova, 48 quilos e 1,51m de altura, mas não é isso que faz a diferença. Denise tem uma tolerância à dor acima da média.
- Percebi que os homens não têm a mesma tolerância à dor, param mais por isso. Eu sei que se parar, a dor não vai melhorar. Então, continuo. Tento me motivar dur ante as 24 horas. Se me pegar andando, penso logo, “como você é fraca”. Minha competição é comigo mesma. São os meus limites que preciso vencer.
Lições dos ultradesafios
Potencial ignorado: À medida que mais pessoas se aventuram em provas extremas, fica evidente que muita gente subestima o próprio potencial. Há uma barreira mental maior do que a física. “Uma pessoa bem treinada, saudável e com orientação médica vai mais longe do que sonharia”, diz o especialista em medicina do esporte Claudio Gil de Araújo, diretor médico da Clinimex.
Estratégia: Saber planejar o que comer, quando dormir e o quanto correr. Provas de longa duração demonstram que uma estratégia adequada pode fazer o que muita gente consideraria quase um milagre.
Riscos e benefícios: Claúdio Gil diz que não há comprovação científica de que ultramaratonistas tenham alterações perigosas no coração.
Teste para a cabeça
Vitória da mente sobre a dor
Cada vez mais gente se aventura em competições de resis tência. Muito mais pelo desafio pessoal do que para testar o desempenho esportivo.
- De certa forma, essas provas são como a escalada do Everest ou a peregrinação a Santiago de Compostela. Evidenciam que os limites do ser humano não são bem conhecidos. No caso de ultras, como a Rio24h, é até mais simples. Uma pessoa saudável, orientada por médico e profissional de educação física, e determinada pode completar. Não é a experiência excruciante que muita gente pensa - afirma Claudio Gil de Araújo.
Ele lembra que nos últimos anos tem se discutido se o coração de pessoas que praticam atividades de resistência, como maratonistas e ciclistas de longa distância, sofreriam alterações perigosas. Porém, não h á até agora prova científica que justifique essa crença.
- O risco de morrer numa maratona é de um para cem mil. Num comício de quatro horas, o tempo médio que uma pessoa leva para completar uma prova assim, é o mesmo - observa o médico.
Ricardo Sartorato salienta que superadas dificuldades como logística, treinamento e alimentação, é preciso resistência mental, para passar longas horas só, tendo como companhia os próprios pensamentos e dores num corpo exposto a um exercício extenuante.
- Algumas pessoas se aproximam de um limiar perigoso. Por isso, essas provas testam a capacidade da razão sobre a emoção, da determinação sobre a dor e o cansaço - destaca Sartorato.
Fonte: O Globo