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Manipulação genética no limite da ciência
Chineses manipulam embriões humanos pela primeira vez na História e reacendem um debate ético. A divulgação de um artigo científico em que pesquisadores chineses descrevem como manipularam embriões humanos numa tentativa de corrigir um defeito genético responsável pela beta-talassemia (uma doença do sangue potencialmente fatal) reacendeu o debate sobre o uso das ferramentas da biotecnologia para alterar o genoma humano, a bioética e os limites da ciência. Cautelosos quanto a esse tipo de pesquisa, muitos cientistas temem que as modificações, mesmo que com o objetivo de curar doenças, tenham consequências imprevisíveis sobre gerações futuras. A experiência também traz preocupações de seu uso em iniciativas de eugenia, filosofia surgida no século XIX que prega a “melhoria” das populações por meio do casamento de pessoas com características supostamente “superiores” e eliminação ou esterilização das ditas “indesejadas” — classificação que, dependendo da sociedade e da época, incluiu desde doentes mentais a homossexuais, passando por negros, índios e judeus — e resultou em pesadelos como o nazismo.
Rumores sobre a realização do experimento circulavam no meio acadêmico desde março. Segundo o site da revista “Nature”, tanto a “Nature” quanto a “Science”, duas das mais prestigiadas publicações científicas do mundo, rejeitaram o artigo pelo menos em parte devido às questões éticas que o trabalho suscita. Mas a equipe de pesquisadores, liderada por Junjiu Huang, da Universidade de Sun Yatsen, em Guangzhou, na China, conseguiu que ele fosse aceito para publicação, no último dia 18, pelo bem menos conhecido periódico “Protein & Cell”.
‘CORTE E COSTURA’ DE DNA
Numa tentativa de driblar as preocupações éticas quanto ao experimento, Huang e seus colegas usaram embriões “inviáveis”, isto é, que não resultariam em nascimentos, obtidos em clínicas de fertilização locais. Com uma técnica de edição genética conhecida como CRISPR/Cas9, uma espécie de “tesoura molecular“ que corta e une o DNA em locais específicos, eles procuraram remover a mutação responsável pela beta-talassemia e substituí-la por um trecho de DNA saudável em 86 embriões. Destes, 71 sobreviveram ao procedimento, dos quais 54 foram testados para saber se ele tinha funcionado. Em 28, o DNA defeituoso de fato tinha sido removido no local pretendido, mas só em quatro a substituição pela cópia saudável injetada junto com o complexo de enzimas CRISPR/Cas9 foi bem-sucedida. Além disso, muitos dos embriões manipulados acabaram com alterações também em outras regiões do gene que controla a fabricação deste tipo de hemoglobina ou genes similares em outros cromossomos que, se expressadas em um ser humano, provocariam graves problemas de saúde ou morte. Diante destes resultados, Huang e sua equipe reconhecem que o experimento foi um fracasso, mas ainda assim defendem a realização de novas experiências para melhorar a precisão da técnica de edição genética.
— Se quisermos fazer isso com embriões normais, precisamos estar perto de 100% (de sucesso) — disse Huang ao site da “Nature”. — É por isso que interrompemos (o experimento). Acreditamos que (a técnica) ainda está muito imatura. Mas queríamos mostrar nossos dados para o mundo de forma que as pessoas soubessem o que realmente aconteceu neste modelo ( de expe rimento) em vez de ficarem apenas falando sobre o que aconteceria.
Para isso, no entanto, eles também vão ter que superar as repercussões éticas que o anúncio de seu experimento provocou. No mês passado, a “Nature” já havia publicado um alerta de alguns dos pesquisadores mais proeminentes na área pedindo uma moratória total nos estudos que envolvam a manipulação genética de espermatozoides, óvulos e embriões humanos. “Não somos ratos de laboratório, muito menos algo como um milho transgênico. Por décadas, os países desenvolvidos debateram a modificação de genes em células reprodutivas e se posicionaram contra isso”, disse então ao GLOBO Edward Lanphier, presidente da Aliança para a Medicina Regenerativa e um dos cinco cientistas que assinaram o artigo na revista.
Para Regina Parizi, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Huang e sua equipe falharam primeiro pela falta de transparência em sua pesquisa, que só ficou sujeita ao escrutínio e à ava liação cientí fica e ética de outros pesquisadores e do público após a publicação pelo periódico “Protein & Cell”. Além disso, ela lembra que, de acordo com a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), assinada no anos 1990, todas as pesquisas na área devem levar em conta suas implicações éticas e sociais.
— A SBB é uma organização plural e multidisciplinar e, dentro desta pluralidade, nossa posição é que a ciência deve avançar, mas sempre com prudência, para que os procedimentos científicos realmente resultem em benefícios para a Humanidade e evitem malefícios — diz. — Entendemos a ansiedade dos cientistas e da sociedade para que as pesquisas avancem, mas os experimentos com o genoma humano devem ser feitos com cautela. A ciência deve ser feita com consciência. Ao manipularmos o DNA humano, ninguém sabe ao certo o que pode acontecer. Podemos corrigir um problema e criar vários outros, além de abrir caminho para ideias perigosas de filosofias como a eugenia e criação de “super-raças”. Por isso, os processos científicos do genoma humano devem ser feitos com segurança, transparência e controle da sociedade, e os cientistas devem sempre se fazer a pergunta: “Isso é necessário?”.
RESPONSABILIDADE ÉTICA
Já Volnei Garrafa, professor e coordenador do Programa de PósGraduação em Bioética da Universidade de Brasília e integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, destaca que, quanto a questões de segurança e ética das pesquisas, não existe meio-termo.
— A ética, assim como a ciência, é glacial. Ou seja, diante de um determinado fato, o indivíduo não pode ser 40%, 60% ou 80% ético — considera. — No caso de pesquisas científicas relacionadas aos limites biotecnocientíficos, sabe-se há algumas décadas que nem tudo que pode ser feito deve ser feito, especialmente por razões de biossegurança identificadas com a própria genômica das gerações que estão por vir. Não se trata de precaução exagerada, mas de responsabilidade ética com relação a procedimentos cujos resultados não são absolutamente seguros e que possam vir a colocar em xeque a vida futura da espécie no planeta. Neste novo território do conhecimento denominado Bioética, é preferível falar em prudência do que em temor. O problema central está no fato de que certas modificações radicais inseridas na estrutura original do genoma humano poderão tornar-se irreversíveis, inviabilizando a reprodução futura da espécie tal como vem acontecendo até hoje. E em uma catástrofe destas proporções, a quem caberá a responsabilidade?
Fonte: O Globo