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A cura pela expectativa
RESUMO Estudos sistemáticos realizados nos últimos anos mostram que práticas como a acupuntura e a homeopatia não são mais eficazes do que o uso de placebos. No caso do consumo de grandes quantidades de vitaminas, pesquisadores identificaram um surpreendente aumento no risco de câncer e problemas cardíacos.
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O gentil leitor provavelmente nunca ouviu falar em crenoterapia, mas ela não só existe --consiste na “utilização medicinal de águas minerais como terapia“, segundo o Houaiss-- como em tese ainda é incentivada e custeada pelo SUS, nos termos da portaria 971, de 3 de maio de 2006, do Ministério da Saúde.
Esse mesmo texto legal determina a inclusão de acupuntura, homeopatia e fitoterapia nos serviços públicos de saúde. Não é difícil imaginar por que um político incluiria inutilidades, desde que faturáveis, na conta do SUS. Mas e os usuários? Como explicar que a homeopatia, por exemplo, tenha tantos fãs ardorosos sem reconhecer que eles podem estar convictos de que ela funciona?
E não são apenas os usuários. A grande maioria dos médicos homeopatas também acredita sinceramente nas virtudes e na eficácia de seu saber. Por quê? O que distingue a medicina científica, que existe há mais ou menos 200 anos e vem ajudando a elevar a expectativa de vida e a longevidade, de práticas de eficácia discutível que agruparemos sob a rubrica “pseudomedicina“?
Para esboçar uma resposta a essas perguntas, sirvo-me de três bons livros. O mais veemente é “Do You Believe in Magic?: The Sense and Nonsense of Alternative Medicine“ (Você acredita em mágica?: o sentido e a falta de sentido da medicina alternativa), de Paul Offit, infectologista pediátrico, coinventor da vacina contra o rotavírus, que a essa altura já salvou milhares de vidas, e autor de várias obras que denunciam as crenças absurdas que conspiram contra a saúde pública. Offit bate sem dó em figuras bem conhecidas que promovem práticas sem comprovação científica, como Oprah Winfrey, e mesmo alguns colegas médicos que ocupam generoso espaço na mídia norte-americana.
Num tom mais circunspecto, temos “Snake Oil Science: The Truth About Complementary and Alternative M emplo de Lind, é preciso juntar vários pacientes que tenham o mesmo problema, submeter uma parte deles ao tratamento que você quer testar e a outra o grupo-controle-a um placebo.
Há, é claro, alguns cuidados. O primeiro é que, como a psicologia importa, nem os pacientes nem os profissionais que participam da pesquisa podem saber quem está no grupo de teste e quem está no grupo-controle. No jargão científico isso é conhecido como duplo-cego.
Os números precisam ser significativos. Idealmente, deveriam ser milhares de pacientes, para compensar as inevitáveis diferenças individuais entre eles. Como nem sempre isso é possível, cientistas juntam várias pesquisas diferentes para extrair resultados mais robustos. São as chamadas metanálises.
Bem, e o que as metanálises dizem sobre a homeopatia? Em resumo elas dizem que homeopatia e placebo são indistinguíveis. Embora uma metanálise de 1997 conduzida por Klaus Linde e publicada em “The Lancet“ tenha mostrado resultados levemente favoráveis à homeopatia, ainda que não conclusivos, revisões posteriores não deixaram muita margem a dúvida.
O mais duro golpe contra a homeopatia veio da mesma “The Lancet“, que, em 2005, publicou uma grande metanálise que reavaliou 110 testes clínicos de melhor qualidade envolvendo produtos homeopáticos e placebos. Concluiu que não havia diferença e significativa entre ambos.
FEBRE Resolvido o problema da homeopatia, vejamos a acupuntura. Como relatam Singh e Ernst, a primeira aparição dessa técnica no Ocidente foi em fins do século 17. Mas depois que Richard Nixon normalizou as relações dos EUA com Pequim, a acupuntura se tornou uma febre. Caiu no gosto do Ocidente e foi chancelada por importantes instituições com base em trabalhos científicos (é preciso muito cuidado com eles).
Numa revisão de 1979, a Organização Mundial da Saúde (é preciso muito cuidado com ela) afirmou que a prática era efetiva para mais de 20 doenças, incluindo sinusite, resfriado comum, bronquite, asma, disenteria, artrite.
Em 2003, a organização voltou à carga e publicou outro trabalho no qual avaliou 293 estudos. Disse que os efeitos da acupuntura haviam sido comprovados para 28 doenças, de enjoos matinais a AVC. Mais ainda, ela parecia ser efetiva para mais 63 moléstias. A OMS recomendava ainda que se fizessem mais trabalhos com vistas a descobrir se funcionaria para daltonismo, surdez, convulsões e coma.
Ou a “panacea universalis“ havia sido encontrada ou havia algo estranho aí.
Profissionais mais céticos começaram a produzir estudos de melhor qualidade, que não apresentavam resultados tão positivos. Esses trabalhos foram avaliados numa série de revisões patrocinadas p ela reputada rede Cochrane.
Para começar, os “papers“ mostram que a acupuntura não é efetiva para a maioria das moléstias para as quais a OMS a recomenda. A prática não é melhor do que placebo para tratar a dependência de cigarros, de cocaína, asma, epilepsia, depressão, glaucoma e demência vascular. As metanálises, entretanto, indicaram que poderia haver um efeito superior ao de placebos para dores nas costas e de cabeça e alguns tipos de náusea.
Uma das inovações que resultaram na piora da avaliação da acupuntura nas revisões Cochrane foi a incorporação de controles mais adequados. Em vez de comparar doentes submetidos a acupuntura com pacientes sem tratamento, os novos trabalhos passaram a empregar a “falsa ac upuntura“, isto é, aplicação de agulhadas em pontos “errados“, por exemplo, de modo que o efeito placebo estivesse presente nos dois grupos.
A conclusão inescapável é que o efeito da acupuntura vai se reduzindo e poderá minguar ainda mais nos próximos anos.
Os acupunturistas, é claro, tentam salvar seu edifício, afirmando que a acupuntura falsa também é mais efetiva do que o placebo. Em termos lógicos, é possível, mas a experiência sugere que, quando um discurso supostamente científico é obrigado a rever todos os seus paradigmas, ele não era tão científico quanto fazia crer.
ELIXIR Superada a acupuntura, é hora de alfinetar os adoradores de vitaminas. O interessante aqui é que vitaminas, ao contrário de placebos, são essenciais à vida. O problema é recomendá-las em altas doses como uma espécie de elixir que tudo cura.
A crença no poder ilimitado das vitaminas só faria mal ao bolso do cidadão se o excesso desses micronutrientes não fosse danoso para a saúde. Mas é, como atestam repetidos bons estudos que, por alguma razão obscura, não conseguem penetrar a barreira do senso comum.
O primeiro foi uma colaboração entre o National Cancer Institute, dos EUA, e o Instituto de Saúde Pública da Finlândia. Eles acompanharam 29 mil fumantes finlandeses com mais de 50 anos que receberam vitamina E, betacaro teno, ambos ou nenhum. O resultado surpreendeu. Os que tomaram as vitaminas tiveram seu risco de morte por câncer e doenças cardíacas aumentado.
Em 2004, pesquisadores da Universidade de Copenhague fizeram uma revisão sistemática envolvendo 14 estudos com 170 mil pacientes que tomaram vitaminas A, C, E e betacaroteno. Não encontraram nenhum efeito protetor para o câncer no grupo vitaminado, mas sim um aumento da mortalidade geral.
Resultados semelhantes se repetiram em grandes metanálises publicadas em 2005 (Johns Hopkins), 2007 (National Cancer Institute) e 2008 (Cochrane). Nesse meio tempo, alguns estudos foram interrompidos porque o grupo que recebia as vitaminas estava sujeito a um aumento de risco eticamente indefensável.
Em 2014, o periódico “Annals of Internal Medicine“ publicou um veemente editorial intitulado “Enough is enough“ (já basta) em que não apenas pedia a interrupção do uso de suplementos de vitaminas como sugeria que não se dedicassem mais recursos a novas pesquisas nessa área.
E por que elas aumentam a mortalidade? A melhor hipótese até aqui é que seu efeito antioxidante, que inibe a ação de radicais livres, isto é, moléculas que danificam o DNA e as membranas das células, não é sempre positivo, ao contrário do que se pensava. É bastante provável que o corpo tenha necessidade de radicais livres para matar bactérias pato gênicas e controlar a proliferação de células cancerosas.
E AGORA? Onde isso nos deixa? A posição politicamente correta seria afirmar que devemos nos ater aos medicamentos e terapias aprovados por agências regulatórias após exaustivos ensaios clínicos e sempre sob supervisão médica.
Ocorre que, mais uma vez, a realidade é mais complexa. Há ampla evidência de que, valendo-se de uma combinação de brechas na legislação, vulnerabilidades epistemológicas e manipulações estatísticas, laboratórios conseguem produzir estudos que pintam um quadro muito mais favorável a suas drogas do que deveriam.
Muitas delas, notadamente antidepressivos, apesar de terem sido aprovadas, não apresentam desempenho superior ao de placebos e seus efeitos adversos tendem a ser mais acentuados. Isso, porém, é assunto para um próximo texto.
Fonte: Folha de S.Paulo
HÉLIO SCHWARTSMAN